A vinha de Deus

Um dos textos mais populares da literatura profética era o Cântico da Vinha, alegoria do profeta Isaías sobre a ingratidão da vinha escolhida por Deus, rodeada por ele com todos os cuidados possíveis e que, contudo, não produziu frutos. A vinha é Israel que, em vez de produzir a justiça - o bem que Deus deseja para todos -, institucionalizou o derramamento de sangue e a opressão.

Esta é a 1ª leitura de hoje. Faz pensar na América Latina: era um continente paradisíaco (até hoje alguma coisa disso sobrou); foi dado aos cristãos da Europa, incentivados por indulgências e privilégios pontifícios para “propagar a fé”... Mas o fruto foi a violência institucionalizada.

Se alguém achar essa exegese atualizada demais, olhemos para a exegese atualizada do Cântico da Vinha que Jesus propõe (evangelho). Jesus não acusa a vinha, como Isaías, mas aos agricultores. Se o “senhor da vinha” nunca viu os frutos, não é porque a vinha não os produzia, mas porque os arrendatários os desviavam...

Inclusive, maltratavam os emissários que o dono mandava (os profetas), e quando mandou seu próprio filho, o herdeiro, quiseram assegurar para si a herança da vinha, matando o herdeiro. Jesus, enviado junto ao povo de Israel para reclamar frutos de justiça, foi “jogado fora da vinha” (o Calvário, fora dos muros de Jerusalém) e morto.

O resultado foi que a vinha lhes foi tirada e confiada a quem entregasse a produção: os pagãos, que acolheram a pregação dos apóstolos antes dos judeus. E o texto acrescenta que isso realizou uma lógica que já estava nas Escrituras: a pedra jogada fora pelos construtores tornou-se pedra angular do edifício (SI 118 [117],22s). Esta é a lógica da morte e ressurreição de Jesus, na qual está fundado o novo povo de Deus (cf. At 2,33; 1Pd 2,7).

Assim, esta parábola contém duas lições:

1) Deus esperava justiça de Israel, mas precisou colocar novos administradores para colher o fruto de sua vinha. Ora, o “fruto de justiça” é a fé que atua na caridade, pois justiça é aquilo que é conforme à vontade de Deus, e esta é, antes de tudo, que escutemos Jesus e ponhamos em prática o que ele ensina (cf. Mt 17,5 e par.). O “fruto da justiça” inclui tudo o que a obediência à palavra de Cristo produz: amor sem fingimento, fraterna união, mútua doação etc.

2) A grandeza da obra de Deus: não há mal que por bem não venha. A rejeição de Cristo foi a prova da injustiça dos arrendatários, a abolição de seus privilégios, a transferência da vinha para os gentios que se converteram e produziram fruto: a Ressurreição do Cristo num povo novo.

Não leiamos esta parábola com olhos triunfalistas, considerando-nos os “bons”. A história se repete. A Nova Aliança, em que o antigo povo de Deus, ingrato, abre o lugar para o novo povo universal de Deus, é uma realidade escatológica, isto é, já iniciada, mas ainda não definitivamente estabelecida. Em outros termos, a qualquer momento podemos cair fora! Quando nos apropriamos dos frutos, fazendo do povo de Deus nosso negócio (pense na cristandade que sangrou a América Latina...), então, já não somos administradores da vinha. Para entender bem o evangelho de Mt, devemos sempre pensar que os fariseus somos nós mesmos! E seremos o novo povo de Deus, edificado no Cristo ressuscitado, apenas se entregarmos a Deus os frutos da justiça.

A 2ª leitura nos mostra o que são os frutos de justiça: tudo quanto for verdadeiro, nobre, reto, puro, amável, honrado, tudo o que for virtuoso e digno de louvor... Paulo não oferece um elenco de boas ações, de coisinhas para fazer. Ele tem confiança na consciência do bem que Deus nos deu. Sejamos gente, em nome de Cristo Jesus: então produziremos frutos de justiça! E o Deus da Paz (o dom messiânico por excelência) estará conosco.

A liturgia eucarística é marcada pela idéia da unidade de novo povo de Deus (sobretudo canto da comunhão, opção II). Na mesma linha, pode-se rezar o prefácio dos domingos do tempo comum VIII. A oração final expressa o fundamento desta trindade: a Eucaristia nos deve transformar naquele que recebemos. Recorrendo aos sinais eucarísticos, podemos dizer: somos o corpo de Cristo, a vinha do Pai.

Do livro "Liturgia Dominical", de Johan Konings, SJ, Editora Vozes

fonte: www.franciscanos.org.br