A festa de Corpus Christi


Aproxima-se a festa do Corpo de Cristo: do pão partido, do pão dado, da vida oferecida em resgate pela salvação do mundo. A Igreja Católica celebra nesta festa tão importante de sua liturgia o mistério da Eucaristia que nos diz que o pão que partimos e o vinho que bebemos se transformam, pela ação do Espírito Santo na consagração da missa, no corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A festa de Corpus Christi tem também um alcance social, além de religioso. Adorar o corpo de Cristo presente na Eucaristia nos obriga a respeita-lo, cuida-lo e servi-o nos corpos muito reais e concretos dos outros ,irmãos e irmãs de humanidade, filhos do mesmo Pai, da mesma raça daquele que confessamos e proclamamos presente e vivo na Eucaristia que nos alimenta e nos fortalece.

O corpo significa ao mesmo tempo Vida e Morte, o normal e o patológico, o sagrado e o profano, o puro e o impuro. As práticas corporais são ritos que imprimem ao ser humano uma certa consciência visceral do mundo, altamente estruturada, codificada, rigorosa e socializada, em que as possibilidades de escolha são limitadas a mínimos parâmetros, porque qualquer liberdade é altamente significativa e põe em risco a totalidade do sistema de ordenação do mundo.

Cada tradição lida com seus ritos sobre o corpo, interditando-o ou não. Convivemos aqui com diferentes formas de lidar com ele, em função das crenças religiosas, que geram valores , atitudes e estabelecem toda a ordem e a contra-ordem social. São representações sociais diversas.

A sociedade codifica o corpo e as codificações do corpo codificam a sociedade. São codificações lógicas e morais.

O mal estar contemporâneo em relação ao corpo se caracteriza principalmente como dor e não como sofrimento. Vale dizer, a subjetividade atual não consegue mais transformar dor em sofrimento, estando aqui a sua marca diferencial e inconfundível. É preciso reconhecer aqui, antes de tudo, que a dor é uma experiência em que a subjetividade se fecha sobre si própria, não existindo qualquer lugar para o outro no seu mal-estar.

Assim, a dor é uma experiência marcadamente solipsista, restringindo-se o indivíduo a si mesmo, não revelando este então qualquer dimensão alteritária. A interlocução com o outro fica assim coartada na dor, que se restringe a um murmúrio e a um mero lamento, por mais aguda e intensa que seja aquela. Daí a passividade que domina sempre o indivíduo quando algo em si dói, esperando que alguém tome uma atitude por si na sua dor.

Se isso não ocorre esta pode mortificar o corpo do indivíduo, minando sua corporeidade e forjando sempre o vazio da auto-estima.

Ou, então, a dor pode fomentar as compulsões e a violência, maneira imaginária que são estas de descarga atabalhoada daquilo que dói. Imersa que fica na dor, portanto a subjetividade contemporânea se evidencia como essencialmente narcísica, não se abrindo para o outro, de forma a poder dirigir para este um apelo.

Para os que temos fé, para os que cremos que o corpo e o sangue de Jesus Cristo são verdadeiramente nossa comida e bebida, esta violência com relação aos corpos humanos é inaceitável e nos conclama a uma ação conjunta e solidária. Nossa corporeidade não é solitária, lugar simplesmente do depressivo, do patológico, do narcisismo ou lugar da descarga da violência e da barbárie.

Mas é, fundamentalmente, lugar da comunicação e da presença no mundo, lugar da oblação; lugar do respeito, da reverência e do serviço; lugar da entrega até a morte, lugar da experiência do amor.

Autora: Maria Clara Lucchetti Bingemer