Dia dos Finados - 02/11/2008


A liturgia do dia dos Finados poderia ser chamada também a liturgia da esperança. Pois, como "o último inimigo é a morte"(1 Cor 15,26), a vitória sobre a morte é o critério da esperança do cristão. A morte é considerada, espontaneamente, como um ponto final: "tudo acabou". A resposta cristã é: "A vida não é tirada, mas transformada"(prefácio). Esta resposta baseia-se na fé na Ressurreição de Jesus Cristo.

Se ele ressuscitou, também para nós a morte não é o ponto final. Somos unidos com ele na vida e na morte (Jo 11,25-26; evangelho). Ele é a Ressurreição e a Vida: unir-se a ele significa não morrer, não parar de existir diante de Deus, embora o corpo morra e se decomponha.

Trata-se de uma fé, de uma maneira de traduzir o Mistério de Deus e da totalidade da existência. Já no AT, o autor de Sb observa que as aparências enganam: a justiça dos justos não é um absurdo diante da morte ("ele não aproveitou nada da vida!") . Pelo contrário, é o começo do "estar na mão de Deus", que não tem fim (1ª leitura). Assim também descreve Paulo a existência cristã como estar já unido com Cristo na Ressurreição, o que é simbolizado pelo batismo (2ª leitura).

O texto de Paulo introduz, porém, um importante complemento na idéia de que a existência do fiel e justo já é o início da vida eterna: Paulo não gosta nada do espiritualismo exaltado de pessoas que se consideram "nova criação" sem morte existencial da vida antiga. No primeiro cristianismo havia uma tendência para um conceito "barato" da vida eterna, um pouco ao modo dos gnósticos, que achavam que bastava participar de algum "mistério" esotérico para ter a imortalidade. Paulo insiste muito na realidade tanto da morte quanto da ressurreição do Cristo (cf. 1Cor 15,12-19). E para participar destas é preciso também crucificar o velho homem com Cristo.

Portanto, a certeza de estarmos nas mãos de Deus - pela fé em Cristo que nos torna verdadeiramente "justos"- não tira nada do caráter crítico da morte corporal: ela fica um véu, atrás do qual nosso olhar não penetra. Inclusive, para o cristão, ele é mais "séria" do que para quem vive sem se preocupar de nada, porque ela significa desde já a morte do homem "natural".

Não podemos viver com a perspectiva de sermos assumidos pelo Espírito de Deus, para ressuscitar com um "corpo não carnal, mas espiritual" (1Cor 15,44ss), se não nos acostumarmos ao Espírito desde já. O corpo espiritual de que Paulo fala é a presença "ao modo de Deus". Este é o nosso destino. Mas, se não nos tornarmos aptos para este modo agora, como seremos aptos para sempre?

Assim, a morte, para o cristão, é a pedra de toque de sua vida. Dá seriedade à sua vida. Valoriza, na vida, o que ultrapassa os limites da matéria, que é "só para esta vida" (1Cor 15,19). Abre-nos para o que é realmente criativo e supera o dado natural da gente. Um antegosto daquilo que é "vida pneumática", a gente o tem quando se supera a si mesmo, p.ex., negando seus próprios interesses em prol do outro.

O verdadeiro amor implica, necessariamente, o morrer a si mesmo. Superação do homem confinado na perspectiva material, tal é a realidade espiritual que encontrará confirmação definitiva e inabalável na morte. Na morte, o que é verdadeiro e definitivo em nosso existir supera a precariedade da existência. A morte é nossa confirmação na mão de Deus: Ressurreição.

Para tal existência, morta para o homem velho, é que o batismo, configuração com Cristo, nos encaminha. Portanto, vivemos já a vida da ressurreição, num certo sentido. Quem diz isto em termos expressos é João (evangelho). A Marta, que representa o conceito veterotestamentário da vida eterna - a ressurreição depois da morte, no fim dos tempos - Jesus responde que, quem crê nele, já durante sua vida tem a vida eterna (11, 25-26; cf. 5,24).

O fundamento de afirmação não convencional assim é que Jesus mesmo é o dom escatológico por excelência. Quem vê Jesus, vê Deus (Jo 14,9). Quem aceita Jesus na fé, não precisa esperar a vida do além para ver Deus (na linguagem do A.T., "ver Deus" era a grande esperança).

Com isso, estamos longe dos temas tradicionais referentes aos finados. De fato, a celebração dos féis falecidos é a celebração de nossa esperança e da comunidade dos santos, da "comunhão dos santos", tanto quanto a festa do 1o de novembro. A liturgia nada diz das penas do purgatório e coisas semelhantes, que tradicionalmente estão no centro da atenção neste dia. Ao deixarmo-nos ensinar pela nova liturgia, deslocaremos o acento desta comemoração. Vamos assmilar a espiritualidade desta liturgia, para ter uma visão mais cristã da morte, o passo definitivo que conduz à vida verdadeira.

Do livro "Liturgia Dominical", de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
(http://www.franciscanos.org.br/)